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9 de março de 2011

A mulher e sua busca...

SEMANA DA MULHER

A moça tecelã
 
Acordava ainda no escuro, como se ouvisse o sol chegando atrás das beiradas da noite. E logo sentava-se ao tear.

Linha clara, para começar o dia. Delicado traço cor da luz, que ela ia passando entre os fios estendidos, enquanto lá fora a claridade da manhã desenhava o horizonte.
Depois lãs mais vivas, quentes lãs iam tecendo hora a hora, em longo tapete que nunca acabava.

Se era forte demais o sol, e no jardim pendiam as pétalas, a moça colocava na lançadeira grossos fios cinzentos  do algodão  mais felpudo. Em breve, na penumbra trazida pelas nuvens, escolhia um fio de prata, que em pontos longos rebordava sobre o tecido. Leve, a chuva vinha cumprimentá-la à janela.

Mas se durante muitos dias o vento e o frio brigavam com as folhas e espantavam os pássaros, bastava a moça tecer com seus belos fios dourados, para que o sol voltasse a acalmar a natureza.

Assim, jogando a lançadeira de um lado para outro e batendo os grandes pentes do tear para frente e para trás, a moça passava os seus dias.

Nada lhe faltava. Na hora da fome tecia um lindo peixe, com cuidado de escamas. E eis que o peixe estava na mesa, pronto para ser comido. Se sede vinha, suave era a lã cor de leite que entremeava o tapete. E à noite, depois de lançar seu fio de escuridão, dormia tranqüila.

Tecer era tudo o que fazia. Tecer era tudo o que queria fazer.

Mas tecendo e tecendo, ela própria trouxe o tempo em que se sentiu sozinha, e pela primeira vez pensou em como seria bom ter um marido ao lado.

Não esperou o dia seguinte. Com capricho de quem tenta uma coisa nunca conhecida, começou a entremear no tapete as lãs e as cores que lhe dariam companhia. E aos poucos seu desejo foi aparecendo, chapéu emplumado, rosto barbado, corpo aprumado, sapato engraxado. Estava justamente acabando de entremear o último fio da ponto dos sapatos, quando bateram à porta.

Nem precisou abrir. O moço meteu a mão na maçaneta, tirou o chapéu de pluma, e foi entrando em sua vida.

Aquela noite, deitada no ombro dele, a moça pensou nos lindos filhos que teceria para aumentar ainda mais a sua felicidade.

E feliz foi, durante algum tempo. Mas se o homem tinha pensado em filhos, logo os esqueceu. Porque tinha descoberto o poder do tear, em nada mais pensou a não ser nas coisas todas que ele poderia lhe dar.

— Uma casa melhor é necessária — disse para a mulher. E parecia justo, agora que eram dois. Exigiu que escolhesse as mais belas lãs cor de tijolo, fios verdes para os batentes, e pressa para a casa acontecer.

Mas pronta a casa, já não lhe pareceu suficiente.

— Para que ter casa, se podemos ter palácio? — perguntou. Sem querer resposta imediatamente ordenou que fosse de pedra com arremates em prata.

Dias e dias, semanas e meses trabalhou a moça tecendo tetos e portas, e pátios e escadas, e salas e poços. A neve caía lá fora, e ela não tinha tempo para chamar o sol. A noite chegava, e ela não tinha tempo para arrematar o dia. Tecia e entristecia, enquanto sem parar batiam os pentes acompanhando o ritmo da lançadeira.

Afinal o palácio ficou pronto. E entre tantos cômodos, o marido escolheu para ela e seu tear o mais alto quarto da mais alta torre.

— É para que ninguém saiba do tapete — ele disse. E antes de trancar a porta à chave, advertiu: — Faltam as estrebarias. E não se esqueça dos cavalos!

Sem descanso tecia a mulher os caprichos do marido, enchendo o palácio de luxos, os cofres de moedas, as salas de criados. Tecer era tudo o que fazia. Tecer era tudo o que queria fazer.

E tecendo, ela própria trouxe o tempo em que sua tristeza lhe pareceu maior que o palácio com todos os seus tesouros. E pela primeira vez pensou em como seria bom estar sozinha de novo.

Só esperou anoitecer. Levantou-se enquanto o marido dormia sonhando com novas exigências. E descalça, para não fazer barulho, subiu a longa escada da torre, sentou-se ao tear.
Desta vez não precisou escolher linha nenhuma. Segurou a lançadeira ao contrário, e jogando-a veloz de um lado para o outro, começou a desfazer seu tecido. Desteceu os cavalos, as carruagens, as estrebarias, os jardins.  Depois desteceu os criados e o palácio e todas as maravilhas que continha. E novamente se viu na sua casa pequena e sorriu para o jardim além da janela.

A noite acabava quando o marido estranhando a cama dura, acordou, e, espantado, olhou em volta.  Não teve tempo de se levantar. Ela já desfazia o desenho escuro dos sapatos, e ele viu seus pés desaparecendo, sumindo as pernas. Rápido, o nada subiu-lhe pelo corpo, tomou o peito aprumado, o emplumado chapéu.

Então, como se ouvisse a chegada do sol, a moça escolheu uma linha clara. E foi passando-a devagar entre os fios, delicado traço de luz, que a manhã repetiu na linha do horizonte.
 
MARINA COLASANTI
Doze Reis e a Moça no Labirinto do Vento. 6. ed. Rio de Janeiro: Nórdica, 1982.

***

 

Marina Colasanti (1938) nasceu em Asmara, Etiópia, morou 11 anos na Itália e desde então vive no Brasil. Publicou vários livros de contos, crônicas, poemas e histórias infantis. Recebeu o Prêmio Jabuti com Eu sei, mas não devia e também por Rota de Colisão. Dentre outros escreveu: "E por falar em amor", "Contos de amor rasgados", "Aqui entre nós", "Intimidade pública", "Eu sozinha", "Zooilógico","A morada do ser", "A nova mulher" (que vendeu mais de 100.000 exemplares), "Mulher daqui pra frente", "O leopardo é um animal delicado", "Esse amor de todos nós", "Gargantas abertas"; e os escritos para crianças "Uma idéia toda azul" e "Doze reis e a moça do labirinto de vento". Colabora, também, em revistas femininas e constantemente é convidada para cursos e palestras em todo o Brasil. É casada com o escritor e poeta Affonso Romano de Sant'Anna.  

8 de março de 2011

O grande dia...

 SEMANA DA MULHER

 
 Vítimas de ataques com ácido fazem vigília onde pedem o fim da violência contra as mulheres em Dacca, Bangladesh. Ataques com ácido são comuns em países como Camboja, Afeganistão, Índia, Bangladesh e Paquistão.

DIA INTERNACIONAL DA MULHER
 
Eis que hoje é o grande dia, o Dia Internacional da Mulher, e quem acompanha meu blog sabe que estou homenageando a minha (nossa) classe há alguns dias. Já passaram por aqui Cora Coralina, Cecília Meireles, Anita Malfatti e hoje, fiquei com uma imensa dúvida: o texto de quem eu postaria hoje? Então lembrei que hoje é o aniversário de uma professora muito querida que tive na faculdade, a professora (feminista e feminíssima) Cátia Toledo. Lembrei-me também de um texto belíssimo dessa admiradora e, digamos, "difusora" da obra da Marina Colasanti. Como forma de homenageá-la nessa data que é duplamente dela, resolvi postar um belíssimo poema dessa "professora tecelã" (quem teve aulas com ela sabe do que estou falando, e quem não teve, amanhã postarei aqui o conto "A moça tecelã", da Marina Colasanti para entender).

Que nessa data tão especial e simbólica,  data em que celebramos muitas conquistas, nós possamos refletir sobre nossa condição na sociedade. Que nós possamos nos valorizar cada vez mais, fazendo por merecer nosso tão sonhado espaço no mercado de trabalho. Que tenhamos força, e principalmente, espírito de união para conquistarmos muito mais, e que façamos valer os direitos já adquiridos. Penso que precisamos nos unir mais, é o que sinto ainda. Acredito que a competitividade é um ponto negativo da nossa classe, isso porque, nossa natureza ainda é muito territorialista e digo, sem medo de retaliações, que perdemos espaço para os homens por causa disso. Mulheres, a união faz a força, olhe para a história, olhe para trás, ninguém mudou nada sozinha. Nossa união fez e fará (sempre),  toda a diferença!

MULHER, PARABÉNS PELO SEU DIA!!!

***

As minhas mulheres

Das várias mulheres que me habitam,
uma anda querendo sorrir.
Vejo seu ensaio,
seu lábio que de soslaio esboça
uma alegria de viver,antiga,
esquecida num porão qualquer.

Cansada de ser triste, me chama para o sol
para um azul qualquer
e insiste em ser feliz.

Todas as outras a condenam.
Lembram-lhe a solidão da noite
o vazio da cama
a falta do companheiro esperado
e perdido...
Falam-lhe da dor
da vontade de morrer
de todos os dias cinzentos...

As outras
Dizem-lhe que se cale
que é melhor ficar quieta, calada
esperando que o tempo passe
para que um dia, afinal,
se possam reunir amado e amada
num mundo perfeito
sem doença
em que seremos só a essência
e a alegria do reencontro.

Ela, no entanto,
faz-se criança...
Deixa que transpareça
o brilho nos olhos,
há muito baços,
e insiste no canto dos pássaros
no brilho do sol
e na música,
que lava a alma....

Fala-me dos segredos
que podem estar por vir
mas que precisam querer
precisam da vontade
do prazer
de viver.

O que faço com essas mulheres?
que destino tomar?
De fênix, de condor,
de cotovia a rouxinol...
Quem levará a todas
a mensagem de vida
que me mantém? 
Cátia Toledo Mendonça

Possui graduação em Letras pela Universidade Federal do Amazonas (1987), mestrado em Letras pela Universidade Federal do Paraná (2000) e doutorado em Letras pela Universidade Federal do Paraná (2006). Atualmente é professora adjunto i da Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Tem experiência na área de Letras, com ênfase em Literatura Infanto Juvenil, atuando principalmente nos seguintes temas: literatura infantil, leitura, literatura juvenil, e formação do professor. Tem dado assessoria pedagógica a diversos estebelecimentos de ensino, enfatizando a importância da leitura literária no Ensino Fundamental.