Quem foi, afinal, essa tal de Pagu? Essa de quem tanta gente tem falado, escrito, homenageado, se aproveitado, escarnecido ? Essa que, volta e eia, vira moda e vira nome na boca de qualquer um, na beleza e pureza amiga ou na idiotice, mesquinhez, vulgaridade de qualquer um...
É preciso que se diga que Pagu é, antes de tudo, uma pessoa, como eu ou você. Uma mulher, uma criatura incrível, muito acima de qualquer modismo. Não estamos falando de nenhum produto fabricado para consumo dos infindáveis portadores de cabeças com “Síndrome de Vácuo”, nem estamos falando de alguma roupa mágica para vestir a burrice cega e megalômana de “pseudo-intelectuais”, “pseudo-artistas”, “pseudo-doutores”, “pseudo-malucos”, e não sei mais o quê.
Estamos falando de um ser humano, que tentou “ser” humana – na verdadeira acepção da palavra e em tudo o que isso implica - com todas as suas forças, com todo o seu possível, embora também dentro de todas as suas limitações. Peço a vocês, leitoras ou leitores, principalmente a vocês aí, que andam falando asneiras sobre esse ser humano que não está mais aqui para poder se defender – e que, na verdade, mesmo se estivesse, é provável que nem se desse a tal trabalho – peço a vocês que, antes de pensarem ou dizerem qualquer coisa sobre essa mulher, dêem uma olhada neste humilde artigo e se permitam conhecê-la um pouco mais e melhor.
“Pagu” não foi o único apelido ou pseudônimo que ela teve. Estes eram inúmeros: "Zazá”, “Patsy”, “Pat”, “Solange Sohl”, “P.T.”, “P.G.”, “Mara Lobo”, “Irmã Paula”, “G. Léa”, “Leonnie”, “Ariel”, “Brequinha”, são apenas alguns exemplos. Seu nome verdadeiro era Patrícia Rehder Galvão, e o livro mais completo a seu respeito, para quem estiver interessado, é “Pagu: vida-obra”, de Augusto de Campos, lançado em l982, pouco conhecido do público e difícil de se encontrar. Há também um outro, muito bom: “Patrícia Galvão – livre na imaginação, no espaço e no tempo”, editora UniSanta, de autoria de Lúcia M. Teixeira Furlani. É nestes dois livros, aliás, que se baseiam a maior parte das informações deste artigo, e também em algumas conversas com pessoas que tiveram o privilégio de conhecer Pagu ainda em vida.
Foi lançado, no início do mês de maio de 2004, juntamente com a abertura de uma exposição de desenhos de Pagu e documentos sobre ela no MIS (Museu da Imagem e do Som) de São Paulo, um outro livro com textos e organização também de Lúcia Maria Teixeira Furlani: “Croquis de Pagu – 1929 – e Outros Momentos Felizes que Foram Devorados Reunidos”, Editora UniSanta/Cortez.
DO NASCIMENTO AOS 30 ANOS
Patrícia Rehder Galvão nasceu em 9 de junho de 1910, em São João da Boa Vista – SP, sendo a terceira filha de Adélia e Thiers Galvão de França, e trazendo nas veias o sangue dos imigrantes alemães e dos quatrocentões paulistas. Quando estava com apenas 12 anos, nasce a Semana de 22, a aurora do Movimento Modernista, que protestava contra o servilismo brasileiro à cultura e arte estrangeira, especialmente a européia.
Em 1925, aos 15 anos, normalista, e já tendo passado por escola de freira (onde, entre outras coisas, fumava escondido, pulava muros e dividia traquinagens com a irmã e melhor amiga, Sidéria), estréia como colaboradora no“Brás Jornal” de São Paulo, com o pseudônimo de “Patsy”. Em 1928, o amigo e poeta Raul Bopp dá-lhe o apelido que se tornaria o mais conhecido: “Pagu”, pensando que seu nome fosse Patrícia Goulart. Nesse mesmo ano é apresentada aos modernistas do grupo de Oswald de Andrade, Mário de Andrade, Tarsila do Amaral, Anita Malfatti, Benjamin Peret e outros. Pagu tem apenas 18 anos, então. É muito inteligente, cheia de vida e audácia, original e pertencente ao mundo de idéias vanguardistas. Mas é também apenas uma menina de 18 anos – e não uma espécie de devassa desvairada, inconseqüente, destruidora de lares e pares “perfeitos”. Tarsila e Oswald são fascinados por ela e praticamente a adotam. Ela, por sua vez, os admira e os ama com todo o ardor de que a juventude a reveste.
A partir de 1929, Oswald se apaixona por Pagu, que a seus olhos passa a ser o mais autêntico símbolo da ousadia e inconformismo antropofágico. A paixão de Oswald é correspondida, mas como Pagu também sente enorme amizade e admiração por Tarsila, sente-se dividida. Nada disso foi fácil para ela. Passa a dividir sua atenção entre os dois, sem esquecer de reservar também um espaço para o seu trabalho – um detalhe despercebido para muitos, mas importante e inacreditável para sua época e para uma garota de 19 anos!
Durante o período modernista de 28 a 30, Pagu desenha para a Revista Antropofágica e escreve seus “sessenta poemas censurados”, que não foram encontrados. Também são dessa época o “Álbum de Pagu”, elaborado em 1929 e dedicado a Tarsila do Amaral, o qual reunia poemas e desenhos. E há ainda o diário a quatro mãos que escreveu com Oswald. Este separa-se de Tarsila. E em 5 de janeiro de 1930 casa-se, simbolicamente, com Pagu no Cemitério da Consolação, à Rua 17, nº 17. Mais tarde se retratam diante de uma igreja. Em 1931, com a crise econômica agravada pela crise de 29, Patrícia e o esposo se alistam na militância política do Partido Comunista. Nessa fase, ambos editam o jornal “O Homem do Povo”, que expressa uma visão radical de esquerda, e onde Pagu assina a coluna feminista “A Mulher do Povo”, além de ilustrações, cartuns e uma historinha em quadrinhos. É tambem desse período o seu romance “Parque Industrial”, que reflete sua solidariedade com o proletariado e sua crença na salvação do comunismo. Doze anos depois, ela escreveria seu segundo e último romance, no qual apresenta uma visão totalmente diferente, desencantada com a política e a falta de ética, coerência e integridade da mesma.
Ainda em 1931, como militante política, participa do comício dos estivadores em Santos. É presa, e ao ser libertada, o PC a obriga a declarar-se uma “agitadora individual, sensacionalista e inexperiente”. Contudo, Pagu não desiste da luta pelo que acredita. Há uma coragem e uma força não apenas impressionantes nesta jovem de 21 anos, mas também comoventes. Apesar de casada e com um filho, jamais se limitou à rotina dos serviços domésticos (higiênicos, culinários ou sexuais) e, menos ainda, às rotinas e absurdos partidários. Começa a viajar pelo mundo, como correspondente do “Correio da Manhã”, “Diário de Notícias” e “A Noite”. Visita o Japão, EUA, Polônia, Alemanha, China, França, Rússia. É a única jornalista latino-americana a presenciar a coroação do Imperador da Manchúria, de quem obtém as primeiras sementes de soja trazidas e plantadas no Brasil. Sim, devemos a soja à Pagu! Em 1934, a decepção com o comunismo começa a invadí-la e é expressa num cartão-postal enviado de Moscou ao esposo: “Gente pobre nas ruas e luxo para os burocratas.” Estuda em Paris, na Sorbonne, e é presa como comunista, sendo repatriada ao Brasil, quando então separa-se definitivamente de Oswald.
Com o Estado Novo, é presa mais uma vez, em 1935. Sofre terríveis torturas, além de perseguições dos companheiros do próprio partido. São quatro anos e meio de cárcere, dos quais é libertada em 1940, horrivelmente magra e esmagada física e emocionalmente. Seu senso crítico, porém, continua intacto. Prova disso é que, afinal, divorcia-se de vez do PC e percebe que a corrupção, a má-fé, a podridão política não escolhe partido.
A MATURIDADE
Nos anos que se seguem, Patrícia dedica-se a intensa atividade jornalística e cultural, além do convívio com a família e amigos. Volta a se casar. Desta vez com o também jornalista Geraldo Ferraz, de quem tem o seu segundo filho, Geraldo Galvão Ferraz (que no futuro também seguiria a carreira dos pais), e com quem vai morar em Santos.
Em 1950, faz uma última tentativa na militância política, concorrendo à Assembléia Legislativa, pelo Partido Socialista Brasileiro, quando então lança um manifesto onde afirma que as condições degradantes a que foi submetida abalaram seus nervos e inquietações, transformando-a numa rocha vincada de golpes e amarguras, destroçada e machucada, mas irredutível. Não é eleita. Até os anos 50 colabora com vários jornais e algumas revistas de São Paulo e Rio de Janeiro. Em 1955 passa a ser crítica literária e, também, de teatro e televisão do jornal “A Tribuna” de Santos, tarefa que desempenha excepcionalmente até o ano de sua morte. Por sinal, torna-se a fundadora da Associação dos Jornalistas Profissionais de Santos.
Suas colunas de jornal, seus diálogos, seus desenhos, seus escritos, suas atitudes, expressaram, sempre, de maneira forte, inequívoca e sem tréguas, sua mentalidade renovadora e original; sua falta de condescendência com a hipocrisia, egoísmo e “babugens” (como costumava dizer) do mundo; sua luta para arrancar esse mesmo mundo de seus estreitismos, desigualdades, absurdos, preconceitos; sua sensível e inabalável solidariedade ao ser humano privado de seus direitos fundamentais; sua constante revisão de si mesma e seu eterno sonho de liberdade e fraternidade e de um mundo sem fronteiras, onde a arte, a criação e a sensibilidade seriam a moeda universal. Além disso, revelaram e divulgaram o pensamento, as idéias e descobertas de grandes intelectuais e artistas, muitas vezes ainda desconhecidos no Brasil ou até mesmo no resto do mundo. Ela foi a primeira a traduzir para o português trechos de James Joyce ou Sigmund Freud, por exemplo. Foi a primeira a citar, em suas crônicas, Otávio Paz e Jorge Luis Borges, além de salientar nomes como Maiakovski, Fernando Pessoa, Breton, Becket, Stravinski, Valéry, Schoemberg e outros.
No panorama cultural de Santos, Patrícia Galvão foi de inigualável importância, com seu incansável apoio à cultura, ao teatro e às artes em geral. Criou e foi a primeira presidente da União do Teatro Amador de Santos. Devido ao seu prestígio, trouxe para a cidade mais de 1200 participantes do 2º Festival de Teatro Amador. Também foi a primeira a traduzir para o teatro uma peça de Ionesco: “A cantora careca”. Diga-se de passagem, deu enorme parte de seus esforços ao teatro, na qualidade de divulgadora e tradutora de autores importantes, como Brecht e Arrabal. Deste último, traduziu e dirigiu “Fando e Lis” em 1959, com um grupo amador, que teve estréia mundial em Santos, visto que até em Paris a peça só foi encenada 10 anos mais tarde.
OS ÚLTIMOS ANOS
Nos últimos anos de sua vida, passados em Santos, apesar de continuar incentivando o teatro, a cultura, os jovens, e apesar de ainda revelar seu espírito em seus escritos, Pagu começou a beber demais, a assumir uma imagem triste, distante, desleixada. Minha avó, por coincidência da mesma idade dela, e frequentadora assídua dos teatros de Santos daquela época, lembra de vê-la sempre de roupas escuras, fora de moda, cabelos despenteados, olhos angustiados, uma garrafinha de bebida amarrada na cintura, marcas de cigarro por todo lado, talvez escondendo as marcas da dor... Algumas outras pessoas mais velhas deram-me testemunhos semelhantes... Enfim, uma mulher desencantada. Onde estaria aquela Pagu linda, ousada, irreverente, sonhadora, lutadora ?
Ela já havia tentado se matar antes, mas recuperara-se e voltara para a guerra. Agora, porém, era diferente. Agora deixava que a depressão e o cansaço a consumissem. Era como se dissesse: “Ah, sim, ainda quero o mundo com que sempre sonhei, pelo qual sempre lutei, mas não posso mais, estou cansada, alguém, por favor, tome o meu lugar...Não aguento mais lutar, lutar, lutar e lutar, e ver tudo quase como sempre foi, e ver o mundo girar em círculo, e ver a dor e os idiotas reinarem, e ter que começar sempre tudo de novo, e estar sempre com um monte de gente ao meu lado e, ao mesmo tempo, tão sozinha... Deixem-me descansar! Sou muito pequena diante do gigante da estupidez.”
O câncer veio então. Seu último texto em vida, datado de 23/09/62, véspera de uma viagem a Paris para ser operada, dizia: “Nada, nada, nada. Nada mais do que nada. Abri meu abraço aos amigos de sempre. Poetas compareceram, alguns escritores, gente de teatro, birutas no aeroporto. E nada.”A operação não dá certo, e ela é trazida de volta a Santos, onde morre em dezembro de 1962, junto à mãe e à irmã Sidéria, companheira de toda vida.
E a pergunta volta: onde estaria aquela Pagu linda, ousada, irreverente, sonhadora, lutadora ?
“O escritor da aventura não teme a aprovação ou reprovação dos leitores. É-lhe indiferente que haja ou não, da parte dos críticos, uma compreensão suficiente. O que lhe importa é abrir novos caminhos à arte, é enriquecer a literatura com germens que venham TALVEZ a fecundar a literatura dos próximos cem anos.” (Pagu, “A Tribuna”, 29/08/57) Onde andará aquela Pagu linda, irreverente, ousada, sonhadora, lutadora ?
“Por que vocês não vão ler Tarzan, hein ? Pelo menos principiariam sabendo que existe uma coisa chamada aventura, descoberta, audácia.” (Pagu, jornal “A Fanfulha”-SP, onde escreveu de 1950 a 53)
Onde andará aquela Pagu linda, irreverente, ousada, sonhadora, lutadora? “Os ouvidos do mundo, os olhos do mundo, a babugem supersticiosa das ciências e das religiões, os veredictos dos tribunais, éticas conformadoras, sabes o que são...” (Trecho do 2º romance de Pagu, “A famosa revista”, 1941)
Onde andará aquela Pagu linda, irreverente, ousada, sonhadora, lutadora? “Quero ir bem alto... bem alto... numa sensação de saborosa superioridade... É que do outro lado do muro tem uma coisa que eu quero espiar...” (Trecho de “Álbum de Pagu”, 1929)
Onde andará aquela Pagu linda, irreverente, ousada, sonhadora, lutadora? Sim, o gigante era grande demais para suas forças. Para as suas e para as de todos os poetas, escritores e birutas de aeroporto que ela pudesse encontrar. E para as de qualquer um(a). Talvez seja por isso que suas últimas palavras tenham sido
“Nada, nada, nada. Nada mais do que nada.”